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A LUTA DOS LUTOS

Suzete Benites*

*Doutora em Educação.

Mestre em Psicopedagogia.

Educadora Especial.

Psicanalista em formação.

Durante muito tempo, perdas e mortes foram tratadas a partir de uma perspectiva religiosa. Na atualidade, diferentes correntes psicológicas buscam significar por meio de estudos científicos, as perdas em nossas vidas. No texto Luto e Melancolia (1917), Freud tece considerações sobre o afeto do luto, trazendo como características um profundo desânimo, perda de interesse pelo mundo externo, inibição de atividades em geral, incapacidade de trazer para si outros objetos de amor. O luto não patológico, é realizado pela frequência do teste da realidade. Significa que ao constatar, de forma regular que o objeto de amor não mais está no mundo, internamente o enlutado exige que a libido, força de vida, se desvincule do objeto perdido, força de morte, para retornar a vida. É o renascer com novos sentidos, possibilidades e motivos para continuidade da vida. Nessa passagem de desvinculação da força de morte para o enraizamento da força de vida há intenso sofrimento, uma dor inexplicável e avassaladora provocados pela ausência do ser perdido. Algumas pessoas relatam ausência/presença do ser perdido: ausência física contrapondo uma presença interna. Denominado por Freud trabalho de luto ou na solidão cerceando a alma, iniciamos uma caminhada interna reacendendo outras perdas, ressignificando a vida, identificando o que exatamente perdemos, olhamos para a morte, olhamos para a vida, abrindo espaço para verdades ocultas, esquecidas e disfarçadas. Porque no luto choramos por nós, não por quem partiu.

Luto é batalha travada internamente, vivenciada num período de tempo individual, inicia no momento da perda indo até a inclusão dessa perda na nossa história. Estudos de diferentes correntes da psicologia explicam experiências desse processo, o início, como e em que condições se desenvolve, até a efetivação ou assimilação do luto. Teorias explicativas, apesar das especificidades, apresentam também similaridades. A primeira fase aparece como impacto, choque, negação da morte, da perda. Seguida de grande tristeza, surgem outros sentimentos como raiva, culpa, medo do futuro, sempre vinculado ao afeto pelo morto e possibilidades internas do enlutado. Assimilação do luto é aceitação da nova realidade.

As etapas do luto

Para entender o processo e conhecer o desenvolvimento de estágios, fases e/ou sentimentos envolvendo o trabalho de luto, estão descritos abaixo, de forma simples e sintetizada os estudos de Freud, Kubler-Ross e Hellinger.

O pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939) diz que o trabalho de luto é seguimento para a libertação do ego. Christian Dunker (2018), psicanalista e estudioso de Freud, explica como se processam essas etapas, e identifica o primeiro momento como (1) realização da perda, momento em que é necessário certa articulação entre a realidade (partida do ser que se ama) e o imaginário (desejo de permanência desse ser amado). Esse momento é permeado pela negação da morte. Quando essa articulação é construída, surge o segundo momento, (2) identificação alternante, estágio comparado ao julgamento dos sentimentos em relação a perda, surgindo dois afetos fundamentais: a) essa pessoa me deixou porque não amei suficiente e se eu fosse melhor, não teria me deixado; b) mas essa pessoa tampouco me amou o suficiente, não lutou, não teve fé e me abandonou. Estágio regado de culpa, há o surgimento de emaranhados familiares, disputas ou negação de herança, porque está em jogo algo mais profundo, o afeto pelo morto. Reaviva antigas disputas familiares em que se projeta emocional e psicologicamente a invalidação dos bens materiais por não substituir o amor, nem a presença do morto. O estágio seguinte (3) momento do luto, em que realmente surge o luto, trata da articulação com outros lutos, com perdas específicas que antecederam essa perda. É um momento difícil porque as pessoas retornam a melancolia inicial e muitas vezes, de forma inconsciente provocam uma sequência de pequenas perdas (morre o animal de estimação, perde documentos, emprego, perde possibilidades de vida utilizando a doença ou quedas para isso). E somente assim surge (4) autorização da partida, aceitação da perda do outro e, sobretudo, aceitação que a perda é sua, das coisas que perdeu com o outro.  Quase paralelamente a autorização, surge (5) enriquecimento com a perda, o fim do luto, a pessoa sente que aprendeu com a perda e que essa perda faz parte de si. Quando a integração não é completa, permanece um resto de luto traduzido em pequenas e desnecessárias perdas como culpas, autopunições, relações faltosas, etc.

Na década de 60, a psiquiatra Elizabeth Kubler-Ross (1926-2004), teve experiência com pacientes terminais. No livro Sobre a Morte e o Morrer, escreveu sobre essas experiências analisando estágios vivenciados no processo de terminalidade. O primeiro estágio, (1) negação e isolamento, é quando se estabelece sentimento de grande tristeza. Esse isolamento é uma forma de proteção, negando a perda, mantendo-se distanciado da realidade e evitando sofrimento maior, porque sofre da mesma maneira. É um período de muita dor, por isso, negação e isolamento agem como defesa psíquica. No (2) contato com a realidade, a perda é real. Como mecanismo de autoproteção, a pessoa sente raiva e que é injustiçada (porque? é justo?), surge revolta, entende que não é mais possível reverter a situação (restabelecer essa perda). A injustiça não resolve a dor, então aparece a fase seguinte:(3) Barganha.  Estágio que a pessoa negocia consigo mesma, buscando possíveis soluções para sair da dor. Busca explicação dos fatos, frequenta espaços religiosos e leituras abordando espiritualidade com objetivo de entendimento. Tentativa de entendimento e explicações sobre a perda amenizam, mas não solucionam a dor. A (4) depressão, consciência do ente perdido e impotência por não reaver essa perda, é um período longo e de realização concreta da perda, permeado pelo sofrimento e dor. Não é mais possível encontrar defesas para esse sofrimento, resta aceita-lo. O último estágio, (5) aceitação, significa enxergar a realidade como ela é, assimilando a ausência, e encontrando um novo lugar na vida para o sentimento que pertencia ao ente perdido. Muitos estudos de perdas e lutos se originaram nos trabalhos de Kubler-Ross.

Na psicologia sistêmica, Bert Hellinger (1926–2019) apresenta o trabalho de luto vivenciado por diferentes sentimentos, caracterizando-os como movimentos da alma. No livro autobiográfico Minha Obra, Minha Vida (2018) esclarece que em cada luto, o sentimento de perda provoca certo movimento próprio, impulsionado pelo vínculo estabelecido com o objeto de perda. Esse movimento segue duas direções opostas, movimento positivo que cresce num amor cada vez mais e maior; sentimento negativo, que reduz o amor para cada vez menos, crescendo apenas na dor. O autor descreve sentimentos que permeiam o luto, para chegar ao que denomina passo decisivo.  A autora Sabbagh (2020) descreve as fases e indica o primeiro sentimento (1) primário, definido como dor lancinante da separação, é de muito sofrimento, inexplicável para quem sente, há um rompimento na continuidade da vida que conhece. É preciso chorar, não sentir vergonha de estar triste e sentir dor. A dignidade de quem fica é carregar a sua dor nos braços. O sentimento (2) secundário nega a evidência da perda e a pessoa permanece olhando para o morto, para a falta. Algumas vezes sente dívida emocional com aquela pessoa, está em discordância com a realidade, pode permanecer toda vida aí, olhando o seu morto. O sentimento (3) adotado na continuidade dos dois anteriores, com frequência se instala nas famílias que não conseguem realizar despedida, como complemento da infelicidade e negação. Discordar da realidade, faz a pessoa que vive o luto viver do passado, olhando seu morto, por culpa, por medo ou por qualquer outro sentimento que impede de honrar esse morto. O (4) metasentimento, é aceitação, a pessoa está em concordância com a nova realidade pós perda, sintoniza com a força que conduz e que promove vida. Nesse momento, pode dar o (5) passo decisivo, aceitar o destino como grandeza que complementa, agradecendo e reverenciando a presença daquela perda e do significado que teve na sua vida. Todos os mortos e todas as perdas precisam fazer parte de nossa vida ocupando um lugar no coração, lugar que é das perdas e mortos, e que nos fortalece. Dessa forma, incluímos o antes, permanecemos na vida construindo o melhor agora, e continuamos dignamente no depois. Vamos além dos mortos, honrando-os e deixando-os no passado, mas também dentro de nós, no lugar que lhes corresponde. Só assim a vida é plena, porque concebe a morte como fonte da própria vida.

Considerações

As teorias explicativas demonstram que no trabalho de luto há sempre sofrimento e dor. Estágios, fases ou sentimentos não são lineares, funcionam como um espiral, significa ir e voltar; afastar e reaproximar-se da dor. Nem sempre passar um estágio significa avançar no processo, muitas vezes é preciso retroceder mais adiante para recuperar questões que ficaram abertas. E está tudo bem que isso aconteça, um passo de cada vez, faz parte do movimento e sentimentos do luto. As dores são de quem fica, o enlutado chora e sofre por si e não por quem partiu, porque no seu mundo não terá mais aquela presença. Não projetar dor, saber que chora por si, é fundamental para assimilação do luto. Na nova realidade, o enlutado precisa encontrar outros motivos, redimensionando o amor.

Alguns fatores interferem nas condições processuais do luto. O tempo estimado para assimilação do luto são dois anos, porém, esse tempo é individual e está diretamente vinculado as possibilidades internas e ao afeto de cada enlutado. O luto de mãe/pai, avós é diferente, do luto de amigos, companheiros, colegas de trabalho ou conhecidos. Ou tios, ainda que próximos sofrem menos/mais que amigos do cotidiano. Um luto não é maior ou melhor que outro, são diferentes. Pessoas dependentes e frágeis emocionalmente, precisarão de mais tempo para processar. E não nos cabe julgar. Assim como são diferentes os lutos nas idades em que acontecem; perder alguém na adolescência tem um significado e perder alguém em fase mais avançada da vida tem outro significado. O contexto da perda é importante também, como a pessoa morreu? Estava doente? Foi de repente? Era jovem? Idoso? É diferente enfrentar perdas que são consequência de doenças em pessoas com idade avançada e jovens em idade plena, subitamente, de forma violenta como acidentes, doenças terminais, assaltos, e agora, perdê-los para um vírus.

O luto termina, com a assimilação da perda e aceitação da realidade. Ainda que saudades e presença interna permaneça, há mudança de perspectiva, e as boas lembranças abrem espaço para novas relações, permitindo a valorização de/e outros objetos de amor. Enlutados que permanecem presos a um ou mais estágios, estancam na vida e não evoluem, sua caminhada fica entre um ir e vir, em círculos, abrindo espaço para outras perdas, grandes ou pequenas que precisam, em algum momento, de elaboração. Perdas muito significativas reacendem todas as outras perdas, mais ainda se não foram corretamente assimiladas, e estão latentes na vida do indivíduo. No reacender perdas anteriores, o sofrimento é fortalecido, dificulta o avanço do processo. Certamente, em algum momento precisamos experenciar o luto de todas as perdas e integra-las no nosso mundo.

Na assimilação do luto/perda, se reacendem outros interesses pela vida, pelo ambiente. Não significa esquecer seus mortos, ao contrário, deixá-los no lugar que lhes corresponde, um lugar diferenciado na própria história, lembrar com afeto, reverencia-los e agradecer a passagem pela nossa vida. Um exercício importante é não buscar endeusar o morto, valorizar de forma justa. Na medida que ele passa pela nossa vida e deixa uma parte de si. Identificar bons momentos e se fortalecer neles é talvez a saída para essa compreensão. Libertá-los e libertar-se.

Por isso, é fundamental conviver bem com as pessoas em vida, deixar cada um ser como é e ser o que quiser. Não nos cabe julgar o outro, quando nem ainda elucidamos a nossa própria caminhada oculta, repleta de medos, inseguranças, frustrações, incertezas. Deixar brotar o que há de melhor em nós, cuidando das feridas internas, e trazer mais alegria nessa trajetória terrena. Cuidar e encarar verdades, por duras que sejam, ver no outro um irmão e companheiro de caminhada, não rival ou como alguém que eu preciso ser melhor. Cada um de nós precisa estar apenas em contato consigo mesmo, com a força interior, indiferente de como a compreende. Olhar a sua essência. Cada um é responsável por si e pela própria evolução. Gastar energias tentando provar o que não é ou forjando potenciais que não tem, apenas desgasta. É mais saudável viver com autenticidade nas relações, e mais fácil também a elaboração do luto quando alguém amado precisa partir antes de nós. Assim, podemos entender a partida como parte da vida. A morte nos coloca em contato com algo além da vida, que é o elemento que nos leva a gerar mais vida e amor. Vida que segue, aqui, lá, em todas dimensões ou lugares que possamos imaginar. Vida que existiu antes da vida, vida na vida que temos e vida depois da vida. A morte, no final de tudo, é a própria vida. Vida que segue!

REFERÊNCIAS

Dunker, Crithian. Como acontece o luto.https://youtu.be/0Kz7jsXo6B4

Freud, Sigmund. Luto e Melancolia (Freud Essencial) (p. 8). Lebooks Editora. Edição do Kindle. 

Hellinger, Bert; Heilmann, Hanne-Lore. Bert Hellinger: Meu Trabalho, Minha Vida (p. 77). Editora Cultrix. Edição do Kindle.

Kubler-Ross, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. Editora Marins Fontes: São Paulo, 2018.

Sabbagh, Maria Paulina Freitas. O luto na perspectiva sistêmica.

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